sexta-feira, 16 de outubro de 2009




' Outro quarto. Ao menos ainda temos isso em comum: sem dúvida, os muitos quartos. Não exatamente vazios, díficilmente cheios, e nosso pequeno peso disparatado e frágil dentro daqueles enquanto observamos a distância entre a janela e o guarda-roupa, o banheiro e a mesa, a cômoda e a cama - se nada mais nos dão, há sempre uma cama. As cidades lá fora não importam. Estou em meus quartos e você está nos seus e a distância entre nós é profunda demais para ser percebida.
E as viagens. Ambos entendemos disso - uma solidão que persegue enquanto corremos para nos esconder um do outro-, nosso tipo de fuga.
Lembro-me de que o caminho para Norwich era muito frio. Os trens vacilavam, perdiam-se e paravam no campo úmido e monótono, e chuva congelada continuava a cair, nada a impedia, e o meu casaço ainda recendia ao seu abraço , em outras palavras, àquela despedida que a duras penas parecia definitiva e além disso era como cair por cima de nada, de ninguém.
Embora eu seja adulta, sejamos ambos adultos, e estejamos bastante cientes de que podemos viver sem ninguém, sem nada. São muito poucas as perdas às quais não sobreviveremos depois de nosso costume: evitar os pensamentos que preferiríamos não ter e respirar, piscar e engolir como se deve. Nós nos parecemos muito com outros adultos, dignos de crédito.
De qualquer forma, foi uma viagem tão ruim para Norwich que eu quis telefonar para lhe dizer quantas horas a mais do que o previsto ela havia durado, quantos banhos tomei para tentar esquentar minhas mãos, meu corpo, lavar o que não vai mudar.
Um pequeno móvel de fórmica naquele quarto, uma bíblia e um tapete pelado, uma televisão presa à parede, uma chaleira, três pudins de leite que não comi e aquele espaço que eu quase conseguia tocar, que poderia ter ocupado um mês antes, uma semana antes: o formato do meu corpo na cama ligando para você, sentindo-se melhor, compreendida.
Como estar em Londres e voltar àquele lugar para o qual não posso ir mais - onde os quartos possuem paredes grossas em boas condições e cozinhas pequenas, lençóis decentes - e nos encontrarmos da forma como o fizemos: com pressa e delicadeza, completamente enlouquecidos. Jantar quando eu não conseguia encontrar o restaurante, dopada e com a boca costurada, e você saiu me procurando quando telefonei e então fiquei andando em cículos, retendo sua voz no fone, e vigiei até que o vi caminhando em minha direção, me convencendo a entrar.
Falando de como eu não havia feito, não faça, não fiz - sobre ovos de pingüins, odontologia, óleo de lampião, crueldade, roubo, perdão, chegando devagar, a possibilidade de perder tudo, a possibilidade de escrever no escuro. E dissemos que estávamos felizes pela vida um do outro, para não falar da nossa própria. Que é a forma pela qual a alegria chega - silenciosa e escrita na escuridão.
Os quartos sempre vêm com suas diferentes formas de escuridão: lintéis e superfícies sombreadas onde tropeçamos tarde da noite e não conseguimos achar o copo, o interruptor, a maçaneta da porta, o que quer que estejamos procurando e de que pensemos ter necessidade.
Sentar talvez naquele quarto em Colônia para além da ampla janela e da sensação de confinamento caro é um poste de iluminação e o muro do cemitério, a vista das sepulturas antigas, e acho que preciso tentar fazê-lo rir - bem difícil, mas sempre vale a pena - e acho que preciso fazer isto e acho que preciso ver a chama negra do seu cabelo - que evoca a chama negra em sua cabeça - e acho que preciso ver de que forma sua barba cresce quando você deixa - como se ela quisesse que você parecesse ridículo - e acho que preciso sentir o jeito como seu estômago se contrai sob o toque - aquela linda timidez - e acho que preciso ver você sorrir e preciso do seu cheiro quando você não toma banho e preciso ver você sorrir. Preciso ver você sorrir.
Mas estou errada, claro: não preciso disso. O que possuo deve ser o suficiente. Ninguém sobrevive sem ter o suficiente. Tenho a luz do detector de fumaça no teto, a pequena luz vermelha ligando e desligando, e tenho esse cansaço e esse medo de que tudo que resta é esperar sozinha enquanto a morte se aproxima, viaja. Você disse que sentia medo o tempo todo. Agora é também como me sinto, mas não posso lhe contar.
E nada fiz para ajudá-lo quando, desde a primeira vez, você me ajudou. Morrer em um acidente de avião, nunca concluir outra frase, ser feia, ser egoísta, ser imprestável, ser magoada - os medos estúpidos que tem uma pessoa estúpida - você os afastou definitivamente, como se soubesse o que estava fazendo e me conhecesse. Nunca demonstrei verdadeiramente o bem que encontrei em você. Não fui convincente.
Agora estou neste quarto, em Nova York - uma chuva grossa tamborilando na clarabóia e é meu fim de tarde no meio da sua noite: até mesmo nossos dias separados, apartados. Minha bagagem se perdeu e seria divertido se eu conseguisse fazer disso uma história para você - outra viagem desastrosa que não importaria muito porque estamos bem e nos preocupamos que estejamos bem. Só que não tenho história nenhuma, porque você não quer.
Tenho isto, que você não lerá. Qualquer que seja a forma que eu encontre para as palavras, não fará diferença - você não vai me deixar dizer mais nada. Trabalho com tinta invisível, contradigo-me em quartos que não quero e não conheço e continuo na estrada para ir além de tanto silêncio, para estar a seu lado nesta via de mão única, viajando já que sei que você está viajando, fugindo.
Nunca tive certeza quanto ao que acreditávamos, a não ser um no outro, mas, uma vez que estou desprotegida e você talvez também esteja, faço por nós todas as noites uma prece, pedindo que você esteja feliz, que esteja seguro. Então eu teria quase o suficiente.
Meu amor nunca foi melhor que isto.

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